Emoções fora de época


Sobre o ano que terminou no carnaval e nem pediu desculpas? Tenho muito a dizer. Fiz até playlist. Parece que nada aconteceu, mas não é bem assim. Na verdade a gente tem uma mania esquisita de achar que só porque as coisas não saíram da forma como queríamos, elas não existiram. Mas elas existiram: a contragosto, em versões não programadas, em versões adaptadas, em delicadezas necessárias. Eu até esperava [com pesar, mas com entendimento social e político] que passaríamos por uma guerra mundial, mas nunca cogitei uma pandemia. E passei a contar os dias confinada em faixas musicais numa playlist chamada “Confinamento”: uma canção por dia. E durante 218 dias contando a partir do dia 16 de março só vi a cara da rua nas idas quinzenais ao mercado e farmácia. Nenhum abraço, nenhuma visita, nada além do clã de dentro, do gato e de chamadas de vídeo tentando preencher o espaço que fica quando a gente não toca, não divide, não brinda. 

Nesses dias todos comemoramos aniversários entre telas. Chorei algumas vezes. Odiei algumas tantas pessoas. Agradeci todos os dias. Senti medo. Aquela vontade de fazer uma empresa pequena, chamando só gente que admiro e gosto para fazer projetos junto, que me dá ao luxo de não querer fazer trabalho para quem ostenta práticas questionáveis, que me joga na cara todo dia que nada é certo e segurança é coisa que a gente finge que tem, fez 10 anos. Escrevi e publiquei mais um livro, ele já mora em vários lugares e torço aqui para que more em alguns projetos para se tornar muito mais do que capítulos. Consegui reunir gente incrível em projetos [profissionais e pessoais] meio a uma pandemia, sem encontrar ninguém pessoalmente, ouvindo todas as playlists que salvaram as crises de ansiedade que não tive, fazendo pausas para ler todos os livros que não li nos últimos anos, maratonando séries com os amigos que eu maratonava cafés e cervejas. Aprendi a jogar pôquer, desisti do curso de vinho quando começou a pandemia, fiquei um pouco mais de quatro meses sem escrever uma intenção de literatura que fosse [sobrou tempo, mas ele foi preenchido com algum bloqueio criativo que na verdade escondia as tais crises de ansiedade que eu achava que não tinha].  Li tanta mulher incrível esse ano. Falei sobre elas com tantas outras mulheres incríveis que fazem parte da minha vida, que posso arriscar dizer que preenchi esses espaços com tanta coisa boa, que se não fosse esse caos generalizado de depender tanto do senso coletivo para ficar bem, teria sido um ano bonito. Mas a vida é como a playlist “Dias Tintos”: pra degustar em safras que harmonizam com os dramas, os amores e os sustos sempre tão taninos.

Faltou mesmo o abraço, o brinde, o toque, a gargalhada, a dança na esquina da pista. Mas chegamos até aqui sem ficar doente. Então se todas essas faltas foram para evitar fazer parte da pior estatística, estamos bem. Feridos, mas bem. Doloridos, mas bem. Com saudades empilhadas, mas bem. Dispensando convites, mas bem. Putos da vida com um tanto de gente, mas bem. Admirando ainda mais amigos criando seus filhos da maneira mais bonita possível em home office, sem ajuda, num caos diário, sem perder a ternura, também! O corpo da gente tem maneiras esquisitas de doer quando a gente evita chorar, então tudo bem chorar. A forma como a gente declara amor e importância também passou por um largo espectro de modos. Nunca recebi tanta encomenda na vida. Livros, cervejas, canecas para meus cafés - tudo com bilhetinho de amor. Um dia preparei uma festa de aniversário e mandei entregar via ifood. Era só a gente online. Morrendo de saudade, comendo salgadinho ruim e cerveja gelada. O amor roteiro de cinema está lá nas ArritmiasTernárias ditando além do que é movimento e [re]percutindo sentimentalidades - e que virou episódio de ficção com direito a molduras renascentistas para dispositivos móveis.

E como disse em “I could be wrong [versus] I could be right 2020 foi um amontoado de dias com margem de erro e empate técnico. Depois de 218 dias parei de contar. Fiz quatro reuniões presenciais de trabalho, vi duas amigas e voltei para meu confinamento pessoal. Porque ele virou pessoal, não é mais tão coletivo se não existe a responsabilidade da troca, e embora isso não esteja tudo bem, é até aí que consigo chegar. E entre estar certa e errada, escapo vez ou outra para lugares que cultivam aconchego entre dramas latino-americanos – aquela válvula de escape nórdica de vida confortável possível chamada “Hygge”, ou para o tal do Café, que sempre salva e harmoniza com nossa vida alcaloide, e por que não para domingos, afinal, como disse Drummond, 'segunda-feira ninguém sabe o que virá'. 

2020 foi [pra mim] o ano de excesso da gente na gente. Da falta do que está lá fora. Do medo. Da fronteira diária entre ficar bem e pequenas implosões psicossomáticas. Que 2021 nos faça mais gentis e saudáveis.

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